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sexta-feira, 19 de julho de 2013

Marcas psíquicas da violência policial precisam ser cuidadas

Introdução: Decidimos postar essa matéria porque é esta mesma polícia que também faz a guerra às drogas e prende usuários e traficantes. A atual Lei de Drogas, 11.343/2006, ao não distinguir claramente usuário de traficante, triplicou o número de pessoas presas por delitos associados às drogas ilícitas, e estima-se que 90% desses presos - detidos ao acaso, réus primários, sem vínculo com organizações de tráfico, portando pequenas quantidades de produtos proibidos pelos deuses da Tropicália – não passam de usuários que eventualmente vendiam um pouco do produto adquirido para reduzir seus custos.

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A reparação psicológica e o assassinato simbólico das vítimas de violência policial

A conduta da polícia na repressão às manifestações que se espalharam pelo país reacendeu a discussão sobre a estrutura, as práticas e a cultura institucional de nossas polícias militares.

Importantes vozes estão se levantando para afirmar que uma corporação militarizada – e que, por definição, prepara seus oficiais para o combate e a aniquilação de seus inimigos de guerra – é absolutamente inadequada para lidar com os eventuais crimes praticados por cidadãos – que, como tais, devem ter seus direitos por ela respeitados e protegidos.

Mas há um aspecto ainda muito pouco debatido e que não é sem interesse para essa discussão: a dimensão subjetiva da violência de Estado. É fundamental que nos perguntemos sobre as consequências psíquicas trazidas por ações marcadamente brutais, especialmente quando elas são cometidas por quem, supostamente, são os garantidores da segurança daqueles de quem se fazem algozes.

O recente posicionamento da Comissão Nacional da Verdade em relação ao funcionamento da PM – por meio do qual recomenda sua desmilitarização – evidencia a importância de revisitarmos a nossa história, identificando as instituições e as práticas que herdamos do período ditatorial. Mas também nos faz pensar que ainda sabemos pouco das marcas subjetivas que as experiências de violência deixam nos sujeitos e na sociedade.

A mesma brutalidade vista por um dia na avenida Paulista é o procedimento padrão das forças repressivas do Estado em bairros pobres e periféricos. Todos aqueles que se lembram disso não têm dúvidas de que a desmilitarização da PM seja uma bandeira fundamental – tomamos a liberdade, aqui, de fazer referência ao excelente texto de Túlio Vianna sobre o assunto.

Mas é também imprescindível que, aos moldes do que já fazemos com as vítimas da ditadura, criemos políticas de reparação à população que ainda hoje é vítima de arbitrariedades tão ou mais graves. Como forma de permitir que a violência sofrida seja psiquicamente re-significada, é necessário que conste, dentre as medidas reparativas, o atendimento psicológico.

No que diz respeito ao nosso período ditatorial, estamos começando a reconhecer a dimensão da violência de Estado na subjetividade. O projeto “Clínicas do Testemunho”, que oferece atendimento psicológico a vítimas da ditadura – piloto lançado pela Comissão da Anistia, do Ministério da Justiça – dá um importante passo neste sentido.

Com este gesto, o Estado reconhece, pela primeira vez, que os crimes por ele perpetrados deixam cicatrizes importantes não só nos que foram submetidos a torturas e a outras situações degradantes, mas também nas gerações seguintes.

Quando não encontram na sociedade este tipo de reconhecimento, que assegura e legitima a memória da vítima, os familiares de mortos pelo aparato repressor do Estado sentem-se obrigados a carregar o fardo de um luto que nunca se encerra.

Isso porque a manutenção deste sofrimento aparece-lhes como uma tentativa desesperada de evitar uma segunda morte: o assassinato simbólico daquele que, já sem direito à vida, teve, em seguida, o direito à memória solapado por uma sociedade autoritária. Como se coubesse a quem fica a triste missão de fazer de si a pena de um crime sem culpados e a lápide de um homicídio sem cadáver.

É preciso que o Estado reconheça que suas forças policiais, ainda hoje, violam diariamente os direitos fundamentais dos cidadãos – especialmente dos pretos, pobres e periféricos – e que isso não é sem consequências.

O silêncio de governantes diante das violações cometidas pelas corporações policiais pelas quais são responsáveis, assim como a omissão dos ministérios públicos – isso quando os violadores não recebem seus aplausos –, agrava ainda mais o sofrimento das vítimas e de seus familiares, impede que eles elaborem o luto pela perda de seus parentes e produz uma condição de solidão e vulnerabilidade inimagináveis por quem não passa por esta situação. Trata-se, assim, de um crime continuado que dura tanto quanto a impunidade dos assassinos e o não esclarecimento da verdade dos fatos.

Além disso, sabemos que aqueles que são expostos a situações de grave desrespeito a direitos humanos tendem a reproduzir as violações sofridas, constituindo-se, assim, um aparentemente irremediável quadro de violência continuada. Para que este ciclo seja rompido, é indispensável que os sujeitos nele inseridos recebam os cuidados psíquicos adequados, aos quais têm direito. Nos referimos, aqui, não só aos que foram violentados pela polícia; referimo-nos, também, aos próprios agentes de segurança pública que, submetidos às mais variadas formas de humilhação durante sua formação e seu trabalho, são incapazes de pautar suas ações senão pela reprodução da mesma lógica diante dos cidadãos.

Oferecer condições para que estes dois grupos – ambos vítimas de violência do Estado, ainda que com características diferentes – possam elaborar as situações traumáticas vividas, é uma forma de interromper o ciclo retroalimentável de violações e reduzir as chances de que grandes territórios urbanos mergulhem em situações de violência endêmica.

Além de um trabalho de reparação, o atendimento psicológico às vítimas é, portanto, um trabalho preventivo. Ao negligenciá-lo, o Estado impõe à sociedade, por omissão, os altíssimos custos da perpetuação de uma cultura de violência.

Fonte: Margens Clínicas

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